quinta-feira, 7 de junho de 2012

Serie Viajante Solitário - Conto 17


- Sim, senhora, pois tem razão eu não sou um bêbado, mas um viajante...
O pão que ela me deu saciou minha fome e logo tratei de arrumar um abrigo, se ficasse mais tempo nessa noite fria e úmida adoeceria.
Jornais velhos amassados juntos ao poste, tudo o que eu precisava. Ajeitei-me debaixo de uma marquise de maneira mais confortável que a situação permitia, foi quando, inadvertidamente, vi uma foto familiar numa folha rasgada de jornal. Deixei escapar uma lágrima e sorri com uma saudade tão grande, pois reconheci minha própria fotografia numa pequena nota. Relatava meu desaparecimento repentino e pedia notícias, o telefone era de meu irmão e a foto... a foto...
Cabelos cortados curtos, barba feita, olhos brilhantes e esperançosos, terno e gravata... um baile. Sim, foi lá que tiraram a fotografia e eu vivia feliz, imaginava pelo menos, e era como qualquer outra pessoa; um amor lindo, atividades saudáveis, família, respeito profissional. Só não contava com a faca no meu peito, a paulada na cabeça e a cuspida no rosto.
Deito. Penso. Levanto.
A matéria é antiga, o jornal já tem três meses e olho para o céu a procura de uma luz quando dúvidas surgem dentro de mim.
Deito novamente com o rosto sobre o papel.
Ouço gritos. Cada vez mais perto, pessoas correm eu me encolho. Observo homens fugindo apressados, um deles porta uma arma, a polícia vem em seu encalço. Passam por mim e deixam cair algo, os policiais os seguem e a tempestade cessa. O pacotinho caiu a um palmo de meu rosto e partiu-se deixando seu conteúdo se espalhar. Não movi um músculo sequer de meu corpo.
Silêncio absoluto. O vento jogava-o sobre minha face, enquanto mergulhava em reflexões, o conflito eterno das dúvidas contra as convicções. Desejei tanto que minha alma voasse que de fato senti isso de verdade.
Observando meu corpo ao relento deixei que flutuasse com a primeira brisa, e ri como uma criança feliz. Então subi às alturas e pairei vendo abaixo de mim a cidade iluminada, portanto senti vontade de estar em outro lugar. Como um jato disparei a toda velocidade irrompendo os ares, deixando a cidade, atravessando campos e montanhas até chegar ao meu lugar de origem. Desci e passeei vagarosamente pelas ruas do meu bairro, e meu poder era tanto que atravessar portas e paredes podia facilmente. Tive receio mas consegui devido ao desejo de estar com a família, eles jantavam assistindo televisão aparentemente bem. Todavia notei a ausência de meu pai, no quarto, acamado, doente. Sabia disso mas não o vi, então subi atravessando o teto e voei até outro bairro, em outra casa, parando diante uma janela. Pensei tanto que se abriu e ela surgiu, vi como estava bem e o quanto seu coração continuava impenetrável para mim.
Flutuando no ar, resolvi dar-lhe algo, por isso carregado de carinho olhei para o céu jogando um beijo a uma nuvem. Esta com a ajuda de uma brisa que levou para trás os cabelos daquela mulher, fez com que uma gota de chuva caísse em seu rosto. E ela com um dedo removeu suavemente aquele beijo sorrindo, sabe-se lá por que motivo foi.
Fechei os olhos, ao abri-los estava no topo da marquise a alguns metros do chão, sentado, enquanto uma chuva forte e minhas lágrimas lavavam o sonho de meu rosto. Lamentei e chorei aos brados.
Estava sozinho novamente.
A viagem mortal é caminho sem volta que jamais deve ser trilhado por alguém, é ilusão, mentira, trapaça.
Ao amanhecer, o segurança da loja acordou-me e tocou aos xingos.
Bem aventurado seja !

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