terça-feira, 1 de maio de 2012

Serie Viajante Solitário - Conto 07


Entre um jazz e outro algo diferente, pois começa a tocar uma balada romântica anos 60, Nat King Cole. A garrafa de vinho está pela metade e nossas taças vazias novamente, a dama discretamente requer seu preenchimento.
Hora de cair na real, viajante solitário !
Um motorista de caminhão me deu esse vinagre intragável mas a menina aceitou dividi-la comigo ali, sentados na calçada à frente da loja de discos. Dela apenas sei que é adolescente pelo falar e que se vende pelo olhar, aceitou beber pra se animar, eu pra esquecer.
Dois pequenos rios se formaram em meu rosto deixando sulcos tortuosos, difíceis caminhos em desvio das rugas do tempo. Suas fontes, dois grandes lagos azuis transbordavam imensos, lavando emoções e despejando recordações. A menina foi amar com um transeunte, mas o amor verdadeiro não sei se ela conhece, essa é a dor que me comove, o que eu sinto por ela. Não a conheço nem guardei seu rosto porém a amo. Penso se ela um dia saberia disto, quem sabe se não modificasse sua vida. Esse amor é fraterno, não tem rosto, é puro, forte. Preocupo-me com o destino dessa jovem, imagino a difícil marca que a vida impôs a sua alma, os motivos que poderiam leva-la a isso, a repugnância ao afeto e o duro ato de representar prazer. Tantas coisas indicam carência, sofrimento, dor. Eu a amo, o amor não pergunta o motivo, não olha no rosto. Preocupa-se com o semelhante, sofre junto, oferece o que é bom.
Queria poder dizer que a amo dessa forma, faze-la pela primeira vez na vida amar assim porque amando o próximo ela passaria a agir igual consigo mesmo, e ser feliz, quem sabe cair na real e voltar ao caminho da luz.
Tem um resto de vinho na garrafa.
As preocupações me assolam, começa a chover mas logo passa. Penso na vida como dom maravilhoso e nobre, como oportunidade única e esperada por almas tão inertes e frias quanto a farinha do trigo no pote do armário. Almas são massas que o Criador dotado de uma ciência cósmica leveda e prepara dando forma a um produto, levando ao forno da provação, criando o pão. O pão é a obra, a vida da farinha, o seu propósito.
Almas... como anseiam viver... depositadas no seio da eternidade, como esperam a oportunidade...
Algumas a tem, vivem como eu e você, a humanidade está cheia de vida, almas que cumprem sua missão outras que não.
Há quem despreze a própria vida.
Que ignora sua importância, desafia o Criador, rejeita o que tantas outras almas mais desejaram, a vida. Pois mesmo o mais infeliz dos homens, com dezenas de motivos para o suicídio, miserável, doente, incompreendido, encarcerado ou escravo, jamais deve rejeitar o dom, esse dom que acima de tudo, tudo... é o portal mágico para o iluminado prazer da elevação espiritual, onde não ha dor, nem pranto, nem fome ou escuridão.
Finalmente o vinho acabou.
A notícia que recebo não é tão alegre quanto o torpor alcóolico em que me encontro.
A pequena dama, aquela que a pouco me acompanhava na bebida acabara de rejeitar seu dom maravilhoso com uma dose mortal de cocaína.
As águas tornaram a molhar o leito seco do rio.

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